sábado, 25 de março de 2023

Tempestade Elétrica



Quando você chega à meia idade sem ter conseguido estabelece um único relacionamento romântico mais íntimo, um namoro, a sensação de desamparo e solidão torna-se incômoda, sobretudo porque vai-se tornando mais "invisível" com a idade, cada vez menos desejável.  Mas desde a puberdade desenvolvo paixões platônicas, crio histórias mirabolantes, muitas vezes com absolutos desconhecidos ou caras que conheço muito superficialmente. Nos últimos anos, fiz 49 recentemente, a frequência diminuiu bastante, mas ainda acontece. Por questões profissionais, passei a frequentar uma rua da minha cidade por onde nunca passava. Já na primeira vez que tive que andar por ali, olhei para dentro de um café e vi, atrás do balcão, um rapaz que me chamou a atenção imediatamente. Ele também me viu pela vidraça, senti uma coisa em seu olhar (claro que provavelmente essa "coisa" só existe na minha cabeça) e, impetuosamente, entrei. Nos segundos em que caminhei da porta até o balcão, nossos olhares se tocavam sensivelmente, ele me deu uma piscadinha antes de iniciar o atendimento. Havia também uma senhora uniformizada dentro do balcão. Escolhi um doce, mudei de ideia, pedi outro, ele me serviu e me sentei para comer. Não conseguia desgrudar os olhos do rapaz. É jovem, menos de 30, cabelos escuros bem curtos, pele clara, grossas sobrancelhas, expressivos olhos escuros, com longos cílios de poeta atormentado. A mim, parece ter ascendência ibérica ou talvez até no oriente médio. Acho que os traços e proporções do seu nariz me trazem alguma informação nesse sentido. Ou seus grandes olhos amendoados. Sua beleza me intriga. A elegância do perfil, o formato dos dedos, a barba escura que atravessa a pele e, sobretudo, aquele algo que transborda, indefinível e impossível de ser ignorado. Tem um jeito reservado, sério, e uma delicadeza nos modos, algo quase adolescente na maneira como se move. Percebi que ficou incomodando ou talvez constrangido com meus olhares. Disfarcei, me contive. Comi rapidamente, paguei e fui embora. Mas com a sensação de que tinha deixado qualquer coisa de muito minha naquele café. Essa é a dimensão da minha loucura, da minha carência. É assim que começa uma obsessão, que se autodestruirá em, no máximo, alguns meses. Baixei o Grindr na próxima esquina e o procurei. Falei com um cara, perguntando se era ele. Louco, louco, louco. Um imbecil completo. Aliás, como odeio o Grindr e afins, desinstalei logo em seguida. Desde então, sempre que sei que vou passar pelo café, fico ansioso, tenho vergonha de entrar, de olhar pela vidraça. Semanas depois, entrei. Fui atendido por uma moça, tomei um suco e fui embora. Nada dele. Entrei no Instagram do café, tem um vídeo dele falando sobre tipos café, um tanto tímido e sempre seríssimo. Com muita dificuldade encontrei seu perfil pessoal, mas é fechado. Na Bio diz ser pai de uma criança. Com migalhas de informações produzo um banquete, e já me vi criando uma família com o rapaz, ganhando um filhinho aos quase 50 anos. Que criança adorável ele era nos meus devaneios, e que pai maravilhoso eu seria! (provavelmente a criança sofreria horrores com dois pais tão travados, inseguros e fechados). Rio da minha estupidez, mas é extremamente prazeroso criar uma história sobre o nada. Ou quase nada. Vou pinçando apenas o que me convém para que o engodo não me traia. A impossibilidade prática de que qualquer coisa aconteça é minha vasta margem de segurança. Acredito que nem seja capaz de me envolver de fato com alguém, aturar e oferecer tudo o que nos torna insuportáveis uns aos outros. E morro de pavor de rejeição. Talvez este seja o grande nó da minha existência: nunca me senti amado, e a busca por esse amor, por aceitação e pertencimento, se misturam ao medo de constatar que é inatingível para a maioria das pessoas. Algumas semanas depois voltei para outro suco. Ele estava sozinho nessa tarde. Usava uma bermuda sob o avental e observei seu corpo, seu andar, enquanto atendia outras mesas. Fiz questão de focar em suas pernas enquanto o via descer a pequena escada de 3 ou 4 degraus à frente da minha mesa. Certamente notou meu interesse em suas pernas. Num outro momento, eu estava virado de costar para observar um quadro na parede e, pelo reflexo no vidro que protegia a ilustração, vi quando se aproximou e seus olhos percorreram meu corpo de cima a baixo, com curiosidade. Não sei o que motivou essa curiosidade. Eu também estava de bermuda e ele também observou bastante as minhas pernas. Quando fui pagar, perguntou despretensiosamente: mais alguma coisa, chefe? Sim, o cara me chamou de "chefe". Nesse momento, todas as minhas ilusões ruíram estrepitosamente. Outro dia nos cruzamos na mesma rua do café, ele falava ao celular andando apressado e fiquei com vergonha de encarar. Foi um encontro estranho. Parecia contrariado na conversa, ou preocupado. Tive uma outra impressão do seu corpo nessa situação, me pareceu menos idealizado talvez, mais comum. Talvez ele não ter dado atenção tenha disparado a necessidade de rejeitá-lo de alguma forma. E na semana passada, outra vez um encontro, em outra rua. Eu o reconheci de longe e fiquei envergonhado, tentei evitar, fingindo olhar as vitrines. Mas logo nossos olhos estavam conectados. Eu não sabia o que fazer, nunca sei o que fazer, e deixei assim, olhos nos olhos ("Quero ver o que você faz"), aguardando. Ele parecia bastante empenhado em manter seus olhos nos meus, parecia querer se comunicar. Provavelmente fora do ambiente de trabalho seria mais propício para uma abordagem. Fomos nos aproximando muito, nossos rostos chegaram a ficar numa distância de dois palmos, viramos levemente as cabeças em direção ao outro, como quem diz: estou olhando para você, quero olhar para você, vejo que você está me olhando também e sabe que estou te olhando, "quero ver o que você faz". Se eu tivesse um mínimo de atitude, teria parado e olhado para trás. Não sei se ele fez isso, mas com certeza se eu tivesse feito, ele teria percebido e poderia escolher parar também. Fiquei perturbado com esse encontro. Fantasiando milhões de conjecturas. No dia seguinte, ao passar pelo café, nos olhamos pela vidraça, como no primeiro dia. Meu coração batendo forte, ele parecia nervoso também. Talvez a gente imagine perceber nos outros o que nós mesmos estamos sentindo e desejando. Dias depois, fui todo arrumado e perfumado, decidido a entrar novamente, mas a vergonha me impediu. Passei reto na ida e na volta. Ontem, entrei. Ele estava de costas no balcão e um senhor de idade o acompanhava. Os traços evidenciavam o parentesco, com certeza é seu pai. Ele se virou, cumprimentou, pedi meu suco e sentei numa mesa. Olhava para ele timidamente, de canto de olho. Quando trouxe o suco, que estava delicioso, senti nossos dedos se tocarem quando me passou um canudo. E vi, na mão direita, a aliança de ouro. Um homem comprometido e com filho não parece promissor, mas eu queria saber apenas do momento presente. Uma tempestade elétrica em um toque de dedos, numa fração de segundo, mínimos milímetros de contato, e a maciez da sua pele me transmitiu tamanha energia e emoção. Tudo fruto da minha imaginação, provavelmente. Mas era assim que o tal "momento presente" se manifestava.  Bebi o suco como se lambesse seus dedos cabeçudos que tocaram aqueles morangos e laranjas durante o preparo. O desejo é doce e ácido como laranja com morango. Quando fui deixar o copo no balcão, ele veio buscar, olhando para minhas mãos e o tomou de mim, resvalando o dedo extremamente macio novamente na lateral da minha mão esquerda. "Mais alguma coisa, chefe?". A mesmíssima sensação. Impossível não pensar em como seria tocar seu corpo inteiro, tocar seu corpo todo com o meu corpo todo, pele com pele, e toda essa energia poderosa tomando conta de nós. Uma vez conheci pela internet um cara de família russa que morava em Londres e estava em São Paulo de férias, visitando a família. Nos encontramos para um cinema, e toda vez que nossas peles se esbarravam, eu sentia essa mesma energia faiscante. Fiquei fascinado quando ele disse espontaneamente que sentia essa mesma energia em minha pele. Ou seja, não era coisa da minha cabeça. O segundo encontro foi no apartamento onde estava hospedado, e transamos. Foi péssimo. Zero química, zero tesão, zero faíscas. Não há como prever como seria com o boy do café, não há como saber o que se passa dentro dele, e não sei me aproximar nessas situações, puxar assunto. Até tentei fazer uma pergunta sobre a decoração do café, mas a resposta foi seca e breve. Irei atualizando o conteúdo deste POST se houver motivo. O que você faria nessa situação? Tentaria esquecer ou se aproximar? Ou apenas viveria esse prazeroso frisson de mais uma paixão platônica para preencher a tristeza dos dias?

Atualização besta #1: tenho evitado passar na frente do café e, quando passo, não olho pra dentro. Fiquei um tanto antipatizado com a atitude do menino porque sinto que há um interesse, mas ele não faz um mínimo esforço para se conectar. E eu entendo perfeitamente, já estive nesse lugar de restrição, e no caso dele há um provável relacionamento hétero e um filho para dificultar, mas, para um coroa tímido como eu, é angustiante tentar estabelecer algum contato e levar vácuo sempre. Minha reação natural é passar a ignorar, para ferir deliberadamente ou cortar de vez o que pode vir a me machucar - por não existir de fato ou não poder se concretizar, por indisponibilidade emocional ou seja lá o que for. Mas tem um ímã naquele café que ainda me envolve e puxa meu corpo sem dó. É vontade de olhar para ele e ser impactado por sua passividade nervosa, sua inquietação ostensivamente velada em calma, indiferença e seriedade. Há esse grande prazer em olhar, observar detalhadamente sua figura e tentar entender porquê me toca tão fundo. Muitas vezes me interesso por alguém em quem consigo vislumbrar a mim mesmo em algum momento em que precisei de ajuda e não tive ninguém. Ou seja, qualquer momento da minha vida. Na sexta-feira passada ia passando pelo café, mas pela rua lateral, não a da frente da loja (fica numa esquina). Atravessei a rua diante da grande vidraça. Do outro lado da rua já vi seu vulto inconfundível. Havia uma mesa ocupada por duas senhoras e ele estava em pé diante da mesa ao lado, de costas, arrumando uma bandeja, provavelmente para recolher ao balcão. Virou-se e me viu atravessar a rua. Parou. Parou para olhar para mim. Fiquei nervoso, excitado, todo meu plano de vingança destruído, de certa forma enternecido por ele parar para me ver, sem se preocupar com as clientes ao lado. Senti uma coisa forte no ar, que preciso repetir que não passa de loucura da minha cabeça, mas era quase que um pedido de socorro, era quase como visualizar finalmente essa poderosa força de atração, era quase como imaginar que ele pensa em mim durante seus dias, que eu existo para ele como ele existe para mim, era quase como uma promessa louca e inescapável enquadrada pela janela indiscreta numa tarde nublada qualquer. Era quase e não era nada. Que o quase, concretamente, não é, não existiu. Foi difícil atravessar aquela rua olhando os seus lindos olhos, me sentindo exposto, ridículo, desejado. E triste. 

Atualização mais besta ainda #2: esperava para ir ao dentista e, mesmo não tendo comigo nada para fazer a higiene bucal, fui ao café fazer hora. Tinha várias mesas ocupadas e o garoto estava no mezanino atendendo um casal que falava bastante. A senhora estava no balcão e me atendeu. Sentei numa das poucas mesas que ficam próximas do balcão e ela me serviu. Observei o garoto atendendo, seu perfil bonito, seu sorriso simpático. E na hora de pagar, era com ele. Havia uma pequena fila e esperei ao seu lado, um pouco desconfortável. Foi breve, corriqueiro, "mais alguma coisa, chefe" e coisa e tal. Ou seja, nada. Ou nada do que eu esperava. E entendi que não há nada e que o que eu quero é na verdade um escape de uma vida monótona e absolutamente desinteressante e desinteressada que estou levando. Não tenho uma única atividade que me apaixone, não convivo com quase ninguém e vivo soterrado por pessoas tóxicas e afazeres tediosos. Mesmo que eu seja bastante privilegiado por poder trabalhar relativamente pouco, minha vida é uma merda e me perdi de quem eu sou. Isso num momento crítico em que me aproximo dos 50 anos. Não sou um jovem perdido, sou um cinquentão que não consegue mais viver sua própria vida. Só me restou um relacionamento imaginário para me sentir minimamente interessante para alguém. E talvez o menino tenha me olhado com atenção algumas vezes por pena ou algo assim. Espero nunca mais voltar ao café, ao menos não com a intenção de vê-lo.

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